Imagem – Frame do Filme | Arte – Rodrigo Sarmento

Nos primeiros dias da terceira edição do F(r)icções, que aconteceu em Recife, meus interesses tem se orientado mais a compartilhar meus focos de investigação em relação à análise fílmica [ou como prefiro dizer, ‘os modos de falar sobre os filmes’].

Nessa intenção, tenho experimentado tomar como fundamento o desejo de aliar estímulos à produção de presença, a um olhar disponível a visualidades não evidentes e à elaboração de  pensamentos em torno dos regimes, campos e estruturas que compõem a(s) Teoria(s), História(s) e Crítica(s) de Cinema.

No primeiro dia, exercitamos essa disponibilidade no olhar diante da potência de imagens em Cordilheira de Amoras II (2015, Jamille Fortunato) para realização de um debate com os participantes a partir da seguinte questão: ‘O que vejo?’, tomada de empréstimo da prática corporal Movimento Autêntico (MA).

Nas falas dos participantes em meio ao debate, uma série de perguntas e afirmações emergem para dar conta de explicar as sensações e figuras que aparecem diante dos olhos: desigualdades sociais, poder do fantasia, contextos de vida indígena etc.. Provocar esse exercício de presença diante das imagens se compõe como um primeiro passo para que descubramos, primeiramente, em que nos interessa o gesto de falar sobre os filmes e, em segundo lugar, como dialogar com os regimes que cercam o exercício da crítica.

Partir desse primeiro impulso (o que me faz querer falar sobre as imagens?) me interessa, antes de tudo, por uma via quase existencial, em que falar da nossa relação com as imagens pode evocar vestígios de nossa relação com o mundo (e provocar outras conexões com ele). Mais do que a publicação de críticas semanais ou o desenvolvimento de pesquisas acadêmicas, elaborar a experiência diante das operações imaginantes de um artista me permite me compreender como leitor das imagens do mundo.

Dessa forma, em nosso primeiro exercício, envolvi os participantes a partir da questão ‘O que vejo?’ para elaborar textos diante do curta A festa e os cães, de Leonardo Mouramateus. Ao propor uma questão tão simples para ser respondida a partir da forma textual, me interessa explorar o inconsciente e desarmar os julgamentos, propondo um laboratório de sintomas que faça emergir visualidades não-evidentes que transpareçam de forma sensível por meio das palavras.

Mesmo que a questão ‘O que vejo?’ seja o ponto de partida, as temáticas e sensações que os participantes apresentam durante a exibição do curta transparecem em palavras das mais variadas formas nas breves linhas que constroem lampejos de ideias em torno da obra – sem que necessariamente se atribuam valor ou qualidades às sensações, mas oferecendo lugar para desabrocharem.

Abaixo, alguns dos resultados:


‘Festeiramente nostálgico por flashes da memória que ainda se mantem acessos e que há um esforço emocional para que não se apaguem.
Nostalgicamente doloroso e sonoro por memorias passadas e futuras que aproximam indivíduos não tão individuais.’

(Douglas Albuquerque)


‘Uma cena após outra desnudas nos meus olhos. Uma sequência animada pelas batidas de sons e gritos discretos, de murmúrios duvidosos em um lugar para subverter a tradição, o estável inicio-meio-fim.
Onde tudo começou mesmo?
Mesmo querendo negar não dá! Está quase tudo revelado na medida editada, às vezes esquecida, mas que em algum “dia de sol escondido” tudo se mostra e um bom efeito é encarar. Melhor sem palavras para não se enganar e engasgar com a ousadia que entra, te sacode e te convida para voltar ao jogo, ao fato, à foto.
A unha. Ah! Aquela unha encravada, ditando o ritmo e o íntimo discurso disfarçado de história enquadrada.’

(Leila Alencar)


‘Um filme, mas um filme quase sem imagens em movimentos. No lugar delas, fotografias adentram os olhos umas atrás das outras, tão fortes, tocantes, espontâneas que só poderiam ser o mais absoluto registro do real. Simplesmente a vida, naquele dado espaço-tempo. Os ouvidos não ficam dispersos, também são adentrados por vozes, que a princípio não tomam formas, pois não se vê a boca em movimento. Donas das vozes que narram tantas histórias, registros de vidas que agora são passados para o outro através do poder da imagem e nesse movimento se faz impossível não sentir o próprio corpo  sendo invadido de memórias e afetos. Fruto da identificação com esse outro que se apresenta com tamanha intimidade.’

(Eduardo Queiroz)


‘Uma agonia bonita. Celebração à liberdade e revelia da juventude. Inquietação em entender que lugares mudam, pessoas mudam, sentimentos também. Por fim, uma sensação de paz cansada. De aceitar que é assim que se parece crescer, que tudo vai se moldando aquém das nossas vontades.’

(Rodrigo Victor)


‘A partir da primeira nota de uma canção, a realidade ao nosso redor é transformada. Pode ser que cada um escute de uma forma diferente, assim como vemos cores diferentes, porém ouvi-la juntos não significa homogeneidade, e sim construção coletiva. Assim como a música é uma profusão de sons, as amizades são profusões de experiências. Algumas são notas mais graves, algumas memórias são mais tenras. Alguns sons são distantes como colegas que perdemos. Já um refrão pode ser o lema que não se cansa de reverberar em nossas mentes. Não existe música infinita, mas há algumas que nos parecem infinitas. Da mesma maneira são as lembranças, ainda que registradas em fotos perecíveis de momentos perecíveis, tornam-se eternas pela nossa capacidade de imersão e vivências do irreversível’

(Danilo Lima)


‘O curta-metragem é um frenesi de fotografias com uma voz em off que dá vida às imagens de jovens bêbados se divertindo. A nostalgia toma conta do espectador que viveu a época quando se saía com uma câmera analógica amadora. As lembranças pessoais são aguçadas por um personagem que poderia ser seu amigo. A trilha sonora com música de festa nos transporta para um universo notívago regado a álcool. Fui transportada pro carnaval de 2002 quando levei uma câmera analógica que passou pela mão bêbada dos outros. Uma tentativa fílmica de ‘Viajo porque preciso, volto porque te amo’, de Marcelo Gomes na voz de Irandhir Santos. O enjoo da ressaca toma conta de mim no fim’

(Mayra Coelho)


‘É como estar imerso na imensidão do mundo. O desafio incessante de preencher o vazio da alma com o que tiver disponível: vivemos nas experiências que compartilhamos com os outros. Pequenos delírios efêmeros que atingimos na obsessão de não se perder em si mesmo. Só a melancolia sublinha a solitude em meio à multidão’.

(William Oliveira)


‘Eu não gosto muito de tirar fotos. Mas gosto de ver. Principalmente as mais feias e tremidas, que é quando a gente pega os melhores ângulos e situações. Enquanto eu tava vendo o filme, lembrei que, mais do que tirar fotos, eu escrevia bastante pros meus amigos. Podiam ser cartas de três páginas ou bilhetes de duas linhas. Tinha uma amiga minha com quem eu passava a aula toda de matemática e inglês trocando recados pra falar do povo da sala ou dos professores. E a gente colocava apelidos enigmáticos neles, impossíveis de decifrar, baseados em coisas que só a gente percebia em cada um. Em algum momento do filme, eu parei de ouvir o que os narradores diziam. Fiquei só prestando atenção nas fotos e me imaginando com meus amigos ali. Mesmo sem gostar, meus amigos tiravam fotos minhas, uma pior do que a outra. E eu tenho todas elas guardadas até hoje. Sempre que eu posso, quando sinto saudade, releio os bilhetes, as cartas que eles me mandavam como resposta e revejo as fotos. Muitas bem feias e tremidas. Tudo guardado em caixas pequenas. Teve um momento do filme também em que eu chorei. Foi bem rápido. Mas suficiente pra lembrar que, se eu tô longe dos meus amigos, eu sempre posso encontrar cada um na caixinha mais próxima.’

(Ana Roberta Amorim)