Imagem – Divulgação
Depois dos exercícios com produção de textos com uma ênfase na descrição da experiência sensível diante da imagem e de podcasts, no desenvolvimento de argumentações a partir do compartilhamento em grupo, a atividade final do workshop tomaria como ponto de partida a análise detalhada de cenas. Partindo de uma experiência individual diante da imagem, como posso analisar uma cena como um microcosmo que reflete questões estéticas e temáticas da obra como um todo?
Na França dos anos 50, a crítica de cinema pôde viver certo apogeu através dos redatores da Cahiers du Cinéma (Jean-Luc Godard, Jacques Rivette, Eric Rohmer, François Truffaut) que, por meio de debates intensos, formavam uma resistência contra um cinema considerado “burguês” e conceberam um movimento posteriormente denominado Nouvelle Vague. Desde então, nossa relação com as imagens e nosso poder de amplificação dos debates pôde formar, além de um público mais crítico, cineastas mais embasados esteticamente e tematicamente na concepção de suas obras e interessados em referências e em se comunicar com outras obras.
Contudo, este mesmo movimento também parece se caracterizar por certa “padronização” da escrita crítica em um formato que vem sendo copiado sem critério por muitos destes críticos amadores e profissionais, o que nos leva a refletir sobre as diretrizes e bases que sustentam a formação da crítica cinematográfica em seus diversos meios e veículos, a fim de que não se torne simplesmente um exercício opinativo com fundamentações e referências frágeis.
Em meio a um cenário em que as redes sociais potencializam as opiniões e juízos de valor sobre os mais diversos aspectos, como o exercício da crítica pode repensar seus próprios cânones a partir do foco em sua atividade primordial – a análise da imagem? Diante de um cenário em que os confrontos nas redes sociais vêm se saturando e nos conduzindo a outros modos de nos posicionar diante do outro, talvez, mais do que confrontar uma obra de arte, o exercício do crítico esteja em confrontar a si mesmo. Que perguntas podemos, como críticos, fazer às imagens para encontrar ecos de nossa experiência de mundo? Como o formato do videocast vem se popularizando nesse exercício de proporcionar outros modos de olhar e falar sobre os filmes?
Para isso, apresentamos um panorama de alguns produtos que a produção de conteúdo para internet vem popularizando para falar sobre os filmes a partir da própria linguagem audiovisual – tais como o supercut e o video-ensaio. Dentro da aba do supercut, apresentamos os clássicos trabalhos do diretor e montador Chuck Workman (vencedor do Oscar com Precious Images) e o canal Royal Ocean Film Society, e, na lista mais extensa de vídeo-críticas, vídeo-listas e vídeo-ensaios, Cinefix, Now You See It, Cinéfilos Anônimos, Entreplanos, Meteoro Brasil, Quadro em Branco, Lessons From the Screenplay, The Closer Look, Burger Fiction e Super Oito, por exemplo.
No exercício final, realizamos uma sessão em sala de aula do filme A cidade é uma só? (2012), de Adirley Queirós, e propusemos à turma realizar a análise de uma cena à sua própria escolha a partir da questão ‘O que imagino?‘, que sintetiza os exercícios anteriores relacionados às perguntas ‘O que vejo?’ e ‘O que sinto?’, tomados de empréstimo da prática corporal Movimento Autêntico (MA). A partir do exercício em questão, os participantes se perguntariam: ‘A partir do sentimento que a cena me traz, o que eu penso? Como essa cena comunica as ideias que o filme deseja transmitir? Além disso, como penso essas ideias: concordo ou não com elas? Como elaborar as minhas ideias a partir daquelas que o filme propõe?’
A sinopse do filme é a seguinte:
‘Além de Brasília, são cinco os personagens principais da história. Nancy narra um passado que se repete desde a origem da capital: a especulação territorial/imobiliária. Dandara mora em Águas Lindas de Goiás e tem o sonho de mudar para o Plano piloto de Brasília. Candidato a deputado distrital, Dildu mora em Ceilândia e vive a expectativa do resultado das eleições, contando sempre com o apoio de Marquim, um ex-rapper que agora é marqueteiro político. Já Zé Antônio vende lotes irregulares nas periferias do Distrito Federal.’
Os participantes poderiam escolher qualquer cena do filme para realizar sua análise e também os formatos, que poderiam ser quatro: realizar uma análise somente em texto; em vídeo, usando locução em áudio; em vídeo, usando letreiros; em vídeo, usando locução e letreiros.
Confiram alguns dos resultados:
Texto de Danilo Lima para a cena em questão:
‘Logo em suas primeiras cenas, o documentário A Cidade é uma só?, de Adirley Queirós, prova que sua mensagem de crítica social não é transmitida apenas por entrevistas, depoimentos e registros históricos, mas também pela forma que as imagens e o áudio são organizadas no momento de se contar a narrativa. Esse mérito vem principalmente do bom trabalho e da parceria entre o diretor e o editor, Marcius Barbieri.
Primeiro somos apresentados a dois homens que conversam sobre o loteamento de terrenos em amplos e desabitados morros. Ao encarar essa paisagem bucólica, é possível apreciar inicialmente o cantar dos pássaros do ambiente rural, logo sobreposto e substituído por um som de martelo e construção que representam a chegada do desenvolvimento e do urbanismo ao local. O título do filme é apresentado e, junto a ele, surge a voz do arquiteto Niemeyer, responsável pelo projeto de Brasília, no rádio. A passagem de anos representada por esse corte fica clara quando o arquiteto comenta sobre a construção da cidade planejada, e é quando somos apresentados a uma das primeiras contradições críticas de imagem e áudio.
“Uma cidade que vive como uma grande metrópole.” diz-se no rádio, ao passo que é mostrado não o centro, mas o subúrbio da tal metrópole, onde a urbanização apresenta sua pior marca: a marginalização da pobreza. Um pouco mais a frente, é exibido um conjunto de imagens de arquivo do Distrito Federal, majoritariamente Brasília. No fim pode-se inferir que se trata de uma propaganda do Governo do Distrito Federal com forte caráter ufanista. Há, nessa sequência de vídeos, a representação de diversos símbolos nacionais, como a bandeira, o samba e uma referência aos 150 anos da independência do Brasil, enaltecendo o acelerado desenvolvimento do país e suas mais recentes obras monumentais.
Entretanto, a propaganda, a qual termina exibindo uma criança branca no parque com a frase “Brasília, síntese da nacionalidade, espera por você”, dá lugar a uma cena do trabalhador Dildu e seu cunhado no carro. Aparentemente não relacionável, esse momento é uma das transições mais geniais orquestradas pela montagem. Isso porque a primeira sentença pronunciada por Dildu no diálogo com seu cunhado é “Será?”. A frase foi deslocada do seu sentido padrão da conversa para, através da montagem, completar e ressignificar a frase da propaganda dita logo antes.
Dessa forma, fica subentendido que essa “síntese da nacionalidade” é restritiva e exclusiva com os pobres, como Dildu, e que eles não são nem um pouco esperados por lá, fato reafirmado ao longo do documentário e atestado pela expulsão de sua comunidade para Ceilândia, bem distante da linda e nacionalista Brasília.’
Texto de Douglas Albuquerque para a cena em questão:
‘A Cidade é Uma Só é um documentário em que em seu cerne pode-se dizer narrar o desenvolvimento de Brasília. Porém podem ser encontrados tantos outros temas que podem ser discutidos com cuidados, como por exemplo: resgate da memória, o planejamento, cultura e cuidados das periferias, o marketing político, o êxodo rural, o suor nordestino sob a capital brasileira entre tantos outros.
São apresentados três personagens principais que cada um desenvolve esses temas anteriormente citados de acordo com suas histórias, perspectivas e discursos, o que termina até sendo bem construído e montado apesar de alguns momentos aparentar ser confuso. Essa confusão pode ser notada tanto quanto a junção de alguns personagens em cenas, como também principalmente em seus respectivos finais, que dos três personagens dois desfechos nos são explanados quando ainda um parece ter parado na metade do filme – inclusive logo do personagem que inicia o longa.
Porém, se analisado de certa forma, isso pode ser uma critica do próprio autor sobre trabalhos inacabados (assunto também criticado no final, relacionado a Ceilândia que apesar de divulgada como um lugar melhor continuou sendo uma periferia precária). Com doses de humor, nostalgia e como já dito críticas, A Cidade É Uma Só nos permite uma hora e dezenove minutos de uma reflexão que por vezes “esquecemos” que estamos assistindo um documentário e sim um filme. Porém, independentemente de seu gênero, a obra consegue passar sua mensagem e entregar sua proposta.’
Texto de Rodrigo Victor para Análise de Cena:
“O passado passou, e só o presente é real, mas a atualidade do espaço tem isso de singular: ela é formada de momentos que foram, estando agora cristalizadas como objetos geográficos atuais; essas formas-objetos, tempo passado, são igualmente tempo presente enquanto formas que abrigam uma essência, dada pelo fracionamento da sociedade”.
No livro Pensando o Espaço do Homem, Milton Santos teoriza várias questões acerca da relação afetiva do homem com os espaços. E é sobre essa relação que me debruço para tecer comentários cobre uma cena específica de A cidade é uma só (2012), de Adirley Queirós. O personagem que aparece na primeira cena do filme, apresentado como um vendedor de lotes, reaparece dessa vez num outro lapso de tempo, andando por entre as ruas que ele ajudou a dividir.
Nessa cena ele comenta sobre como as coisas mudaram e de como as pessoas foram se adaptando aos espaços. Ainda ele, com uma voz mansa, mista de espanto e curiosidade, fala de tempos antes. Como tudo mudou. Nessa cena a gente percebe também como ali há lembranças afetivas para com os espaços. Um discurso comum hoje no desenvolvimento desenfreado das populações. É válido jogar luz sobre uma questão pertinente durante todo filme: a desordem na ordem.
Esse paralelo entre o planejamento de Brasília e as adaptações orgânicas da população para com os espaços. Percebemos como o homem, por assim dizer, modifica para caber. E que isso acontece de forma não intencional. Como o personagem repete suavemente durante a cena: o povo só quer morar. Isso nos faz refletir sobre questões econômicas, geográficas e sociais. A luta de classes, a propriedade e o estado. É sobre preterimento daqueles que estão na base da pirâmide social. A relação entre homem e ambiente, essa linha tênue entre o caos e a graça.’
Texto de Gabriel Coêlho para Análise de Cena:
‘É interessante como, em A Cidade É Uma Só, primeiro longa-metragem de Adirley Queiróz, podemos notar um certo esforço de desconstrução do documentário a partir da inserção de imagens de arquivo, entrevistas e cenas ao estilo Eduardo Coutinho, de investigação através do convívio com os sujeitos e a captura de seus momentos de naturalidade, o que acaba pressupondo, também, uma performatividade do cotidiano.
Nesse trecho do filme, vemos a personagem Nancy, moradora da Ceilândia que gravou o jingle da campanha de erradicação quando criança, falando sobre os reais motivos da desocupação promovida pelo governo à época da construção de Brasília. Atrelada a esse momento, vemos Dildu, candidato a deputado distrital, fazendo campanha nas ruas junto com seu cunhado. O personagem fala que o preço das passagens no DF tem que ser igual ao valor cobrado nos entornos, e distribui panfletos com o número da sua candidatura.
É o documentário buscando, em sua relação com o real, a quebra da imparcialidade. A moradora fala de eventos passados no presente, num modelo mais clássico, enquanto que Dildu e a equipe do filme estão na rua, filmando momentos verídicos, não ensaiados, que, quando montados juntos à entrevista, reforçam e atualizam para o presente antigos conflitos. São os sujeitos responsáveis por essa atualização, não a verdade dos eventos.
A forma do filme sai do modelo tradicional do voice over, da mera entrevista, para evidenciar, na hibridez dos formatos utilizados, que tanto os personagens quanto os espaços filmados, os eventos narrados e a forma do filme fazem parte de uma mesma ilusão, que pode nos engrandecer a partir do momento que a reconhecemos e que, com ela, dialogamos ativamente, como um espelho de sua artificialidade, pressuposto do nosso relacionamento com a realidade.’
O texto de Eduardo Queiroz para a cena em questão é o seguinte:
‘Um dos trechos mais tristes do filme é também um dos mais realistas, é aqui que sentimos (talvez com o Dildu) o choque entre duas realidades completamente distintas. Não sei ao certo se o Dildu é inocente, ingênuo ao apenas um sonhador ignorante. Seu objetivo de chegar à câmara dos deputados é o tempo todo confrontado com a realidade que o rodeia, mas ele parece não enxergar a tal realidade que toma forma bem clara.
Nesse minuto de filme, quando ele se depara com uma grande carreata do PT e ali sua pessoa, sua presença, seus desejos, parecem não existem, parece que são completamente anulados por forças muito maiores que as dele. Dildu mal sabe o que faz um deputado, mas vemos em sua força de vontade a mais pura e singela vontade de mudar e de fazer mudança. Qualquer espectador olha para Dildu e pensa: ela nunca vai conseguir. Mas percebemos que no seu mundo – afinal cada um tem o seu, existem pessoas que acreditam tanto quanto ele que ele pode sim conseguir.
Espero que, conseguindo ou não, Dildu continue, continue desejando, desejando mudar e fazer mudar, pois enquanto a vida tem algum objetivo, ela vale a pena. Que sejamos todos sonhadores ou talvez apenas ignorantes como Dildu, esta parece ser uma melhor alternativa à uma vida estagnada e sem objetivo.’